Em 2007, a convite do então governador de São Paulo José Serra, tomei posse no comando da Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Dentre meus desafios, um era acabar com as queimadas da cana-de-açúcar. Essa prática medieval se mantinha no setor sucroalcooleiro paulista.
O fogo era usado para queimar a palhada da cana, visando a facilitar o corte manual, efetuado com facão, pelos então trabalhadores chamados de "boias-frias". Na época da colheita, o interior virava um fogaréu, visto as lavouras de cana dominarem o território paulista. ...
Além do problema ambiental, muitas cidades notificaram um aumento de doenças respiratórias, incluindo câncer. Donas de casa reclamavam, com toda a razão, da sujeira em seus quintais, enegrecidos pelo carvãozinho, aquela fuligem que sobe aos céus rodopiando na fumaça das queimadas, para depois cair a quilômetros de distância.
Estimado para 2027, o fim das queimadas de cana como prática de colheita já estava estabelecido na legislação paulista. Era, porém, demasiado tempo. Propusemos antecipar esse prazo em 10 anos, ou seja, para 2017.
Teríamos uma década para realizar a adaptação do novo sistema de processamento da cana-de-açúcar em São Paulo. Intitulado Protocolo Agroambiental do Etanol Verde, minha aposta era realizar um acordo de conduta ambiental entre o setor produtivo e o Poder Público, sem alterar a lei. Uma mudança pelo convencimento, não pela obrigação. E tudo funcionou.
O Protocolo Agroambiental, já agora em sua 2ª versão, tornou-se uma referência no agro nacional. Eliminadas as queimadas, os canaviais paulistas são colhidos por máquinas potentes, colheitadeiras que retiram os colmos e deixam a palhada da lavoura picada, cobrindo o solo, protegendo-o com sua matéria orgânica. Se você enxergar um canavial pegando fogo, pode ter certeza de que se trata de um acidente. Ou, pior, um ato criminoso....
Esse é o ponto. O caso do setor canavieiro atesta que o agro moderno e tecnológico não tem mais nenhum interesse, como ocorria no passado, em queimar suas lavouras nem suas pastagens.
Nesses dias de intenso debate sobre as queimadas, é revoltante ver muitas pessoas culpando a agropecuária pela trágica situação. Um dos argumentos é mais ou menos esse: se o território fosse coberto por áreas florestadas, não haveria tantos incêndios no campo. O raciocínio é equivocado.
É óbvio que uma floresta virgem, densa, de Mata Atlântica úmida, impede o eventual, e rápido, alastramento de um foco de incêndio. Ao contrário, entretanto, pode-se perceber que áreas ambientais protegidas muitas vezes funcionam como perigosos pavios. A razão é aquela apontada há décadas pelo Serviço Florestal da Califórnia (EUA), no Canadá, na Rússia e em outras regiões semelhantes do mundo, que sofrem com incêndios de grandes proporções em suas áreas florestais, especialmente de coníferas: o excesso de cobertura morta, mantida no chão entre as árvores.
Pesquisas científicas comprovaram a viabilidade do uso de queimadas controladas nessas florestas para, rebaixando essa espécie de combustível orgânico, impedir incêndios incontroláveis. Ou seja, usar o fogo para combater o fogaréu.
Paradoxal, a ideia parte do princípio de que o fogo faz parte da evolução da vida terrestre, especialmente em certos biomas mundo afora. Querer eliminá-lo, portanto, é uma ideia antiecológica. Noutras palavras, se o fogo é natural, pode-se conviver com ele em sistemas sustentáveis.
Atualmente, no Brasil, vemos acontecer esse paradoxo ecológico em extensas áreas que passaram a ser preservadas no Pantanal. Excluídas da atividade pecuária, antigas pastagens avolumaram por anos sua cobertura vegetal e, ao secarem nos períodos de forte estiagem, como agora, sujeitaram-se aos grandes incêndios.
Em São Paulo, percebe-se o mesmo fenômeno nas áreas de brejos e beiradas de córregos, que passaram a ser protegidas pelo Código Florestal. Anteriormente ocupadas pelos agricultores, o que trazia perda de biodiversidade e prejuízo de recursos hídricos, ao serem abandonadas se tornaram mais facilmente expostas ao fogo.
Conclusão: o assunto é complexo e não admite simplismos. Todos somos culpados pelos incêndios nas áreas naturais. E, frente às mudanças climáticas, cabe aos Estados e aos municípios planejarem, junto com a sociedade, o controle de incêndios em áreas naturais. Ficar culpando os agricultores não leva a nada. Significa apenas fugir da responsabilidade comum.
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