Bagatela imprópria não pode ser ignorada nem refutada

Artigo do jurista Luiz Flávio Gomes


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1. Nos crimes tributários e no descaminho, quando o valor dos tributos devidos e encargos não ultrapassa um determinado patamar (antes era R$ 100,00; depois passou para R$ 1.000,00; posteriormente para R$ 10.000,00 e, hoje, para R$ 20.000,00: STF, HC 120.617-PR, rel. min. Rosa Weber; STF, HC 120.096-PR, rel. min. Luís Roberto Barroso; STF, HC 120.139-PR, rel. min. Dias Toffoli), a jurisprudência admite a aplicação do princípio da insignificância. O fato deixa de típico (do ponto de vista material). Logo, não há crime. Num caso de descaminho julgado pelo TRF 4ª Região, em 10/10/07, o valor excedia pouca coisa do limite então reconhecido. Ocorre que o agente do fato perdeu a mercadoria, pagou os impostos devidos, era primário, de bons antecedentes etc. O tribunal, diante da impossibilidade de reconhecer o princípio da insignificância, deixou de aplicar a pena no caso concreto, por entender desnecessária (expressamente invocou a bagatela imprópria); 2. Num caso ocorrido no RS o agente tentou se suicidar com sua arma de fogo ilegal, não consumando a morte. A tentativa de suicídio não é punível, consoante o Código Penal; o juiz reconheceu esse regramento, mas impôs a pena relacionada com a posse ilegal de arma de fogo; o Tribunal de Justiça eliminou essa pena (em virtude das drásticas consequências do fato para o próprio agente). Na mesma linha, num outro caso, o agente estava com arma de fogo em casa, com licença vencida; num ato de desespero a sua filha, em depressão, conseguiu localizar a arma que estava escondida e tentou o suicídio; a pena não foi imposta em razão do intenso sofrimento que o fato gerou para o próprio agente. Em todas essas situações estamos diante da bagatela imprópria, ou seja, o fato nasce relevante para o direito penal, mas no momento da sentença o juiz entende que a aplicação da pena torna-se desnecessária. O princípio aplicável aqui é o da desnecessidade da pena, previsto no art. 59 do CP (interpretado a contrario sensu). Todo o direito civilizado é regido pela proporcionalidade e razoabilidade. Se a aplicação da pena prevista para o caso concreto se torna desarrazoada, o juiz tanto pode deixar de aplicá-la (quando for desnecessária) como pode admitir pena menor do que a cominada quando for excessiva (isto é, absurdamente fixada pelo legislador): STJ, HC 239.363, Corte Especial do STJ, rel. min. Sebastião Reis Júnior[1]. Quando em 1494 o Papa Alexandre VI (um dos mais corruptos da história católica), por meio da Bula Inter Coetera, dividiu o mundo em duas partes (uma de Portugal e outra da Espanha, daí gerando o Tratado de Tordesilhas), o rei da França, Francisco I, disse: "O sol brilha para todos e desconheço a cláusula do testamento de Adão que dividiu o mundo entre portugueses e espanhóis". Em outras palavras, Francisco I disse o seguinte: "apontem no testamento de Adão onde está escrito que o mundo tem apenas dois donos". Diga-se a mesma coisa sobre a incompatibilidade entre a bagatela imprópria e o direito penal brasileiro. Nada disso está escrito no testamento de Adão! Os sábios juízes romanos aplicavam sem rebuços o princípio de minimis non curat praetor (os juízes criminais não devem aplicar o castigo penal para coisas mínimas, insignificantes, bagatelares ou de ninharia). Dois mil anos depois, alguns juízes e tribunais no Brasil ainda relutam em aplicar o chamado princípio da insignificância, mas não há racionalmente como escapar da regra de que as infrações penais insignificantes (bagatelares) devem ficar fora do direito penal (nos termos do HC 84.412-SP, do STF). Jamais se pode imaginar a aplicação de um castigo penal a quem subtrai um reles palito de fósforo ou uma folha de papel A4. Incidem aqui outras sanções (civis, sociais etc.). É uma questão de proporcionalidade (ou razoabilidade), que constitui (por mais que teimamos obstinadamente em sentido contrário) o destino inexorável do humano (as nações mais civilizadas já descobriram isso há muito tempo). A bagatela própria está regida pelo princípio da insignificância, que exclui a tipicidade material (consoante decisão do STF: HC 84.412-SP, relator min. Celso de Mello). A imprópria está regida pelo princípio da desnecessidade da pena (reconhecido, por exemplo, pelo TRF 4ª Região, em 10/10/07, num caso de descaminho). Se a jurisprudência admite a bagatela própria sem a existência de qualquer dispositivo legal no Código Penal, não há motivo para não reconhecer a bagatela imprópria (que tem base legal: CP, art. 59). Saiba mais Em Artur Nogueira (SP) o promotor de justiça, num caso de bagatela imprópria, pediu o arquivamento do inquérito policial e o Procurador-Geral de Justiça (MPSP) dele discordou (designando outro promotor para oferecer denúncia). Entendeu o Procurador-Geral que não se aplica no direito penal a bagatela imprópria. Erro crasso. Quando a infração já nasce insignificante (subtração de uma folha de bananeira, por exemplo), fala-se em bagatela própria. Quando a infração nasce relevante para o direito penal, mas depois a imposição da pena perde completamente seu sentido, fala-se em bagatela imprópria, que tem como fundamento a desnecessidade concreta da pena prevista no art. 59 do CP (que deriva da doutrina de um penalista alemão chamado Claus Roxin, que prega a aproximação entre a política criminal e o direito penal). Ao discordar do promotor o Procurador-Geral (no Protocolado 97.807/14) invocou os seguintes argumentos: (a) "o princípio da bagatela imprópria, de duvidosa aplicabilidade, se revela de todo inadmissível, porque importa em admitir ao Poder Judiciário a possibilidade de reconhecer, de modo discricionário, que a imposição da pena fica ao talante do magistrado". Trata-se de argumento inteiramente equivocado. No Estado Democrático de Direito nada mais fica "ao talante do magistrado". Nos casos de bagatela própria (princípio da insignificância), não prevista expressamente no Código Penal, a jurisprudência admite a exclusão da tipicidade material, porém, isso não fica "ao talante do magistrado" (ao seu arbítrio, à sua conveniência). Tudo tem que ser fundamentado (CF, art. 93, IX) e, mais, a fundamentação deve ser convincente, razoável e prudente. Os juízes são os responsáveis pela "jurisprudência" (não pela juris-imprudência). Quando não for razoável (constitucional, proporcional) sua decisão, cabe recurso para corrigir os abusos. (b) "A não aplicação da sanção em decorrência de sua pretensa desnecessidade [da pena] somente se encontra autorizada quando há expressa autorização legislativa". Dois erros aqui foram cometidos: primeiro, o juiz deixa de aplicar a pena em várias situações não previstas na lei (princípio da insignificância, causa supralegal de exclusão da antijuridicidade, inexigibilidade de conduta diversa supralegal, adequação social, consentimento válido da vítima etc.); segundo, a desnecessidade da pena está prevista não apenas expressamente (CP, art. 180, § 5º, por exemplo; art. 168-A, § 3º, inc. II) como na parte geral do Código Penal (art. 59 do CP, interpretado a contrario sensu). (c) "É justamente para isso que existe o instituto do perdão judicial, o qual, segundo o Código Penal, é cabível somente quando previsto em lei (art. 107, inc. IX)". Há aqui mais um erro crasso: perdão judicial não é a mesma coisa que bagatela imprópria. Ambos os institutos possuem o mesmo fundamento (desnecessidade da pena), mas são coisas distintas. Nos casos de perdão judicial (CP, art. 121, § 5º, delação premiada etc.) é a lei que define a situação concreta em que o juiz deve deixar de aplicar a pena; o juiz, nessa hipótese, analisa e valora o caso concreto para saber se presentes as exigências legais (intenso sofrimento do agente, por exemplo, consoante o art. 121, § 5º, do CP); nos casos de bagatela imprópria é o juiz que valora tanto o fato do agente (desvalor da ação e do resultado) como o agente do fato (desvalor da culpabilidade) para concluir que, naquele caso, a pena se tornou desnecessária. E o juiz pode e deve fazer isso por força do art. 59 do CP (interpretado a contrario sensu). No perdão judicial não se exige necessariamente um autor de pouca reprovabilidade. A essência da bagatela imprópria é a baixa reprovabilidade do agente do fato. Tudo isso se deve à vinculação necessária entre a culpabilidade e a pena (aliás, aquela é fundamento e limite desta). Na hipótese em que o pai mata o filho em acidente de trânsito, o resultado jurídico é muito desvalioso (estamos falando de uma morte), mas o juiz deixa de aplicar a pena em virtude das consequências do crime para o próprio agente (sofrimento intenso). Não importam as condições subjetivas desse agente nem tampouco sua intensa reprovabilidade. Só são relevantes as consequências do fato para o agente. Nas situações de bagatela imprópria o que o juiz analisa é, sobretudo, a baixa reprovabilidade do agente. Não há como refutar in abstracto (teórica e constitucionalmente) a bagatela imprópria (na medida em que a jurisprudência já admite a bagatela própria). Os casos concretos são muito mais impregnantes que a letra fria das leis incriminadoras. Só a ideologia é insuficiente para negar o que é inegável. (d) "Acrescente-se, outrossim, que a legislação brasileira adotou a teoria normativa pura da culpabilidade, opção que repele, de per si, a tese invocada no pedido de arquivamento". Completamente errada essa assertiva. A legislação brasileira não escreveu em nenhum lugar que adotou a teoria normativa pura da culpabilidade. Quem escreveu isso foi Welzel, em 1939. A doutrina brasileira é que aceita tal teoria. E se se trata de conceito doutrinário (tal como o de autoria), não há impedimento de se aceitar a teoria da necessidade concreta da pena defendida pelo funcionalismo moderado teleológico de Roxin (de 1970). As doutrinas vão se corrigindo ou se complementando com outras doutrinas. Se a doutrina de Welzel (antes da Segunda Guerra Mundial) foi complementada pela doutrina de Roxin (de 1970), não é verdade que a teoria normativa pura da culpabilidade (a culpabilidade é puro juízo de reprovação) repele a bagatela imprópria (que se centra na desnecessidade concreta da pena). Não podemos confundir os dois momentos: a análise da culpabilidade é anterior à análise da necessidade da pena. A culpabilidade, aliás, é fundamento da pena, limite da pena e fator de graduação dela. É indispensável para a imposição de uma pena. Mas ser necessária não significa ser suficiente. A pena está regida pela necessidade. Toda pena desnecessária é tirania (dizia Montesquieu). (e) "Com efeito, o princípio da bagatela imprópria funda-se na teoria funcionalista da culpabilidade [de Roxin], para a qual a aplicação da pena requer, além do juízo de reprovabilidade, a análise da sua necessidade concreta". Finalmente, uma afirmação correta: o fundamento da bagatela imprópria é mesmo a teoria funcionalista de Roxin, que dentro do seu conceito de responsabilidade inseriu a culpabilidade e a necessidade concreta da pena. Isso atende a uma necessidade de proporcionalidade, que é princípio expressamente contemplado na CF (art. 5º, inc. LIV), consoante jurisprudência consolidada do STF. (f) "Note-se, ainda, que o multicitado princípio tem como premissa a tese que entende se prestar a pena exclusivamente à prevenção especial, quando, em verdade, seu escopo se dirige igualmente à prevenção geral e à reprovação pelo ato cometido (vide art. 59, caput, do CP)". Não é verdade que o princípio da bagatela (própria ou imprópria) esteja atrelado exclusivamente à prevenção especial. Sua análise tem que levar em conta tudo, tanto a prevenção geral como a prevenção especial. Quando a pena se justifica por razões de prevenção geral (intimidação geral), o juiz não pode deixar de aplicá-la. Não é verdade que o art. 59 do CP somente cuidou da repressão e prevenção do delito. Também exige que o juiz aplique a pena conforme seja "necessária e suficiente" para a reprovação e prevenção do delito. A necessidade concreta da pena, portanto, está expressamente prevista na nossa legislação.

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